Como a indústria do tabaco pressiona a Anvisa para vender vapes

Lobistas das empresas de tabaco têm pressionado a Anvisa a tomar uma decisão favorável ao uso dos vapes - produto que elas mesmas produzem.

Por RJNEWS em 16/01/2024 às 16:57:36
Manifestantes em protesto em frente à sede da Anvisa pediram a regulamentação do cigarro eletrônico em dezembro de 2023

Manifestantes em protesto em frente à sede da Anvisa pediram a regulamentação do cigarro eletrônico em dezembro de 2023

Na porta de qualquer balada nas grandes cidades brasileiras, é quase certa a presença de algum vendedor ambulante oferecendo, por preços módicos, alguma opção de cigarro eletrônico, com cores e sabores variados. Os novos dispositivos competem com o cigarro tradicional, mas se engana quem pensa que a indústria do tabaco luta contra a novidade: com a diminuição no número de fumantes no mundo, as grandes empresas do setor buscam novos caminhos para manter seu negócio de pé.

Uma das formas é justamente com o investimento em dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), fabricados pelas mesmas empresas e apontados pela indústria como uma alternativa supostamente menos danosa para adultos que fumam cigarros tradicionais e não querem ou não conseguem parar. Entre eles estão os vaporizadores, abastecidos com líquidos que podem conter nicotina, e os produtos de tabaco aquecido, nos quais uma bateria aquece filetes de tabaco.

Apesar da indústria vender seus novos produtos como possíveis soluções de redução de danos, o cenário mundial mostra que existe um novo e grande mercado consumidor para o qual os DEFs têm se mostrado apelativos: os jovens. De acordo com nota técnica da Organização Mundial da Saúde, os dispositivos têm sido "comercializados agressivamente para os jovens". A OMS também aponta que o uso entre 13 e 15 anos excede a taxa entre adultos em todas as regiões avaliadas.

Por que isso importa?

  • Proibidos pela Anvisa desde 2009, os cigarros eletrônicos ou "vapes" estão passando por um processo de reavaliação na agência reguladora que deve se encerrar este ano
  • Com pouco escrutínio público, lobistas das empresas de tabaco têm pressionado a Anvisa a tomar uma decisão favorável ao uso dos vapes – produto que elas mesmas produzem

Qualquer que seja o público-alvo das empresas de tabaco, no Brasil a exploração do mercado esbarra atualmente na proibição dos DEFs pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), válida desde 2009. Em 2022, a diretoria colegiada da autarquia aprovou em consenso um relatório sugerindo que a restrição fosse mantida, com o aperfeiçoamento de campanhas de conscientização e combate ao comércio irregular.

Mas a palavra final ainda não foi dada.

A Anvisa promete tomar uma decisão ainda em 2024 e aguarda o fim da fase de consulta pública, que segue até o início de fevereiro.

Para influenciar a discussão, a antiga Souza Cruz, agora British American Tobacco (BAT) Brasil apostou na contratação de uma ex-diretora da Anvisa como consultora, num mecanismo chamado "porta giratória", pelo qual corporações contratam ex-agentes públicos para influenciar decisões sobre políticas.

Assim como a Philip Morris Brasil (PMB), a empresa tem realizado frequentes reuniões com representantes da Anvisa e submetido pareceres e documentos para convencer os diretores da agência a mudar o entendimento atual. Desde o início de 2021 até novembro de 2023, a agência recebeu representantes da indústria do tabaco ao menos 43 vezes.

As tratativas são legais e demonstram a intensidade do lobby.

Além disso, como mostrou reportagem da Agência Pública, as empresas têm tentado convencer parlamentares no Congresso Nacional e investido em conteúdos pagos que defendem a liberação dos DEFs em grandes veículos de imprensa. O uso de publieditoriais e eventos patrocinados para promover os dispositivos tem sido questionado por especialistas, já que a publicidade de produtos de tabaco não é permitida.

O avanço do lobby das tabagistas se refletiu em uma piora na pontuação do Brasil no Índice de Interferência da Indústria do Tabaco de 2023, que mede o quanto a indústria influi nas políticas públicas de um país. O Brasil registrou 66 pontos, oito a mais do que em 2021, em uma escala de 0 a 100, e ficou na 59º posição entre os 90 países.

Para as organizações responsáveis pela versão brasileira do índice, além de uma melhora no trabalho de monitoramento, influenciou na piora do ranking a atuação de ex-diretores da Anvisa e políticos contratados pela indústria na discussão sobre os DEFs, entre outros fatores. O índice é formulado pela ACT – Promoção da Saúde e pelo Observatório de Monitoramento das Estratégias da Indústria do Tabaco, ligado à Fiocruz.

Esta história é parte do especial Redes de Nicotina (Nicotine Networks), uma colaboração internacional que investiga as táticas da indústria do tabaco para promover uma nova geração de produtos de nicotina além das fronteiras. Redes de Nicotina é uma investigação colaborativa da Agência Pública e cinco veículos das Américas: El Clip, The Examination (EUA), Salud con Lupa (Peru), ChequeaBolivia e Colombia Check.

Pressões na Anvisa

Do início de 2021 até novembro de 2023, a Anvisa recebeu representantes da indústria do tabaco ao menos 43 vezes. A Philip Morris, fabricante do Marlboro, foi a mais recebida, com 14 reuniões. A companhia é seguida de perto pela BAT Brasil, do Derby e Lucky Strike, que se reuniu com membros do órgão regulador em 13 ocasiões. Nem todas as reuniões tiveram os DEFs como pauta, mas o assunto se repetiu em várias delas. 17 encontros ocorreram em 2022 e, outros 12, no ano passado.

Até o momento da publicação desta reportagem, a Pública acessou, por Lei de Acesso à Informação (LAI), 15 atas das reuniões entre representantes da indústria do tabaco ou lobistas pró-vape e autoridades da Anvisa.

Uma das atas mostra que, em 19 de junho de 2023, a BAT Brasil se reuniu com Alex Machado Campos, então diretor da agência, que deixou o cargo em agosto do ano passado, e dois de seus assessores. De acordo com o documento, os representantes da BAT citaram o "risco de uso de produtos irregulares" e deram exemplos de países que liberaram os dispositivos. A reunião não consta na agenda do então diretor.

De acordo com nota enviada à Pública pela Anvisa, a reunião não foi incluída na agenda por uma "falha procedimental".

A reportagem também acessou outras duas atas de reuniões da Anvisa com a Philip Morris, uma em outubro e a outra em novembro de 2022. Em ambos os encontros, a empresa defendeu a liberação dos DEFs e de seu dispositivo de tabaco aquecido, afirmando se tratar de um produto mais "controlado" em relação ao cigarro tradicional.

Na reunião de novembro, a empresa criticou a análise de impacto regulatório (AIR) elaborada pela Anvisa sobre os DEFs, que recomendou manter a proibição. No outro encontro, em outubro, o diretor da Anvisa responsável pela área de tabaco, Daniel Pereira, afirmou à empresa ter "um olhar de agência reguladora e também um olhar econômico". Antes de ser nomeado na Anvisa por Jair Bolsonaro (PL), Pereira era secretário-executivo de Marcelo Queiroga no Ministério da Saúde.

De acordo com a nota da assessoria de imprensa da Anvisa, a fala de Pereira "está relacionada a relevância da regulação da Anvisa para a economia brasileira", já que "é necessário compreender que quando inadequada a atuação regulatória pode não atingir seus objetivos e ainda impedir a inovação ou criar barreiras desnecessárias ao comércio, à concorrência, ao investimento e à eficiência econômica".

Em relação aos encontros com representantes da indústria, a autarquia destacou que suas ações estão "sempre fundamentadas no diálogo com a sociedade e na promoção da participação dos diferentes agentes afetados e interessados na atuação da Anvisa". Confira a íntegra da nota aqui.

Porta giratória

Em seis reuniões da BAT com a Anvisa, quem representou a empresa foi a ex-diretora da agência regulatória, Alessandra Soares Bastos, que desde 2021 é consultora da BAT, emprego que assumiu menos de um ano depois de sair da Anvisa, como relatou O Joio e o Trigo. A contratação da especialista em regulação pela tabagista logo depois dela deixar o órgão público é reflexo da branda legislação brasileira que rege a "porta giratória" de agentes públicos que migram para a iniciativa privada.

Enquanto nos Estados Unidos a quarentena dos ex-servidores de agências como a Anvisa para atuar no setor regulado pode ir de dois anos ao resto da vida, no Brasil o prazo é de apenas seis meses.

O uso da estratégia é comum à indústria do tabaco, de acordo com o Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco, da Fiocruz.

Bastos, que abriu uma empresa de consultoria em 2021, fez pelo menos 12 aparições em matérias ou eventos patrocinados pela BAT e veiculados na imprensa brasileira, de acordo com apuração da Pública. Com frequência, também dá entrevistas em reportagens não patrocinadas, muitas vezes tendo sua ligação com a indústria do tabaco omitida.

Em nota enviada à reportagem, Soares destacou que sua trajetória pré-Anvisa sempre foi na iniciativa privada e que se tornou assessora da BAT "obedecendo às leis que regem o cargo" e seguindo "criteriosamente todas as determinações da legislação aplicável". Em relação aos cigarros eletrônicos, ela afirmou que "a estratégia de proibição não funcionou e a regulamentação é a melhor saída para o Brasil evitar uma crise sanitária sem precedentes". Leia a íntegra da nota.

Já a BAT Brasil disse que seguiu "toda a legislação aplicável ao tema" e defendeu a "importância da disponibilidade da profissional para ampliar o debate por meio de conteúdos de interesse público, incluindo informações sobre o processo de regulamentação, para que a sociedade esteja informada e a Anvisa possa tomar a sua decisão sobre o tema".

A Anvisa também se reuniu sete vezes com representantes de associações ligadas à indústria e aos produtores. Em uma delas, cuja ata foi obtida pela Pública, os representantes da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) e da Associação dos Municípios Produtores de Tabaco (Amprotabaco) defenderam os dispositivos. A Afubra é ligada à indústria tabagista, de acordo com o Índice de Interferência da Indústria do Tabaco.

Além das reuniões com a Anvisa, a indústria e seus aliados também foram atuantes durante a tomada pública de subsídios (TPS) promovida pela Anvisa em 2022. Além de BAT Brasil e Philip Morris, as gigantes do setor Japan Tobacco International? (JTI) e Universal Leaf Tabacos, e várias associações de produtores também enviaram contribuições.

Durante a tomada pública de subsídios, a Anvisa ainda recebeu documentos de empresas focadas em cigarros eletrônicos, de organizações pró-vape como o Direta e a Red Latinoamericana por la reducción de Daños Asociados al Tabaquismo (RELDAT) e do Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP), também ligado à indústria do tabaco, de acordo com o Índice de Interferência da Indústria do Tabaco. A ex-diretora da Anvisa e consultora da BAT, Alessandra Bastos, também participou.

Como é comum no processo, além de defensores dos vapes, organizações contrárias à liberação dos DEFs enviaram seus pareceres.

Em entrevista à Pública, Lauro Anhezini Jr., diretor de assuntos regulatórios e científicos da BAT Brasil, disse que a empresa "sempre participa onde tem espaço para falar sobre o nosso assunto" como parte do "trabalho de convencimento".

"Alguns parlamentares, assim como alguns membros da Anvisa entendem e se sensibilizam com o assunto, outros mantém o seu posicionamento contrário", acrescentou.

Para o médico Florentino Cardoso, cirurgião oncológico e integrante do Grupo de Trabalho de Atuações e Intervenções quanto ao Tabagismo e ao Cigarro Eletrônico do Conselho Federal de Medicina (CFM), o que as tabageiras fazem é um "lobby pesado para tentar liberar algo que é extremamente danoso para a população".

O CFM tem se posicionado a favor da manutenção da proibição dos dispositivos. "A indústria assedia pessoas influentes e parlamentares no sentido de defender a causa", completa.

Na avaliação do diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, a situação é "normal".

"O setor regulado, seja ele qual for, que busca um registro de um produto, de um medicamento, de um dispositivo, de um cosmético, ou de algum produto derivado do tabaco, lógico que deseja que aquele produto seja analisado e seja aprovado. Isso faz parte do nosso dia a dia", disse à Pública em coletiva de imprensa no dia 1º de dezembro.

Como a prática do lobby ainda não é regulamentada no Brasil, não há transparência e nem obrigatoriedade do registro dos contatos de lobistas com órgãos estatais e com o Congresso. No final de 2022, a Câmara aprovou a toque de caixa o PL 1202/2007, que aborda o tema. O texto aprovado pelos deputados agora tramita no Senado. Porém, conforme apurou a Pública, pode dificultar a fiscalização de corrupção.

Grupos de consumidores têm ligação com indústria

Quem também está em alta na agenda da Anvisa são os representantes do Diretório de Informações para Redução dos Danos do Tabagismo, conhecido como Direta – uma associação pró-vape. No ano passado, a associação foi recebida na agência reguladora três vezes em menos de um mês. Em 20 de agosto, a reunião foi com Daniel Pereira, diretor da Terceira Diretoria da Anvisa, que analisa os produtos fumígenos. Dois dias depois, a diretora da Segunda Diretoria, Meiruze Freitas, fez uma teleconferência com o grupo. Em 17 de setembro, a associação conseguiu uma reunião presencial com o presidente Barra Torres.

O grupo também tem se organizado para promover manifestações na porta de prédios públicos quando os dispositivos eletrônicos para fumar serão discutidos. Foi o que fizeram em setembro, em uma audiência pública no Senado Federal, e em 1º de dezembro do ano passado, quando a Anvisa marcou uma reunião para decidir sobre a realização da consulta pública.

Naquele dia, duas dezenas de pessoas vestidas com camisetas azuis do Direta ficaram na porta da Anvisa por cerca de uma hora e meia segurando cartazes com dizeres como "quero meu vape seguro", "proibir fortalece o contrabando" e "vape é 95% menos prejudicial do que fumar".

Fonte: Agência Pública

Comunicar erro

Comentários

Zion
Luxhoki