O púlpito politizado
No dia 28 de abril de 2025, o jornal O Globo estampou em página inteira uma notícia inquietante: o novo Código Eleitoral, em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, propõe brechas para permitir campanhas eleitorais em igrejas e, ainda, flexibilizar a punição para "abuso de poder religioso". Trata-se de uma mudança silenciosa, mas que carrega em si uma ameaça profunda: o embaralhamento das esferas da fé e da política, com efeitos corrosivos para a cidadania e para o próprio espaço religioso.
O texto relatado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI) propõe restringir a caracterização de abuso religioso apenas a situações "extremas" e abre a possibilidade para que cultos sirvam de plataforma de campanhas, sob o argumento da liberdade de expressão. Tal movimento não é trivial. Ele reconfigura a função dos templos e compromete os fundamentos do Estado laico, que deveriam proteger tanto a liberdade de crença quanto a igualdade entre os cidadãos.
A questão que se impõe é: quando a fé é capturada pela lógica eleitoral, o que resta da fé?
A crise do espaço público é o desmonte da laicidade
Hannah Arendt, em A Condição Humana, alertava para o perigo da confusão entre as esferas do público e do privado. A religião, historicamente, pertenceu ao domínio do íntimo, do sentido existencial compartilhado, mas separado da arena da política. Quando a fé deixa de ser expressão de consciência e é convertida em ferramenta de mobilização política, ela se desfigura — e o espaço público se deforma.
A matéria jornalística evidencia essa deformação: o Congresso não está apenas discutindo um ajuste técnico da legislação eleitoral; está, na prática, tensionando a separação entre Igreja e Estado, fundação do princípio republicano brasileiro. Como aponta o jurista Fernando Neisser na matéria, a nova brecha tende a "facilitar o uso do ambiente religioso como extensão do comitê de campanha", violando a isonomia entre candidatos.
Entre a Fé e a manipulação:a crítica de Haberman
Jürgen Habermas, em Direito e Democracia, defende a necessidade de uma esfera pública racional, em que as razões compartilhadas sejam acessíveis a todos, independentemente de suas convicções pessoais. Quando lideranças religiosas usam o púlpito para indicar votos — prática que a reportagem de O Globo antecipa como provável —, a esfera pública deixa de ser racional e passa a ser dominada pela adesão emocional, pelo carisma e pela autoridade incontestável do líder espiritual.
Não se trata de excluir a religião do debate público — Habermas reconhece o valor das motivações religiosas para questões de justiça social —, mas de impedir que a linguagem religiosa seja convertida diretamente em instrumento de poder eleitoral, impedindo o debate livre e igualitário.
Assim, permitir campanhas em igrejas equivale a burlar o princípio deliberativo da democracia, criando "cidadãos fiéis" em lugar de "cidadãos críticos".
A pluralidade ameaçada: o alerta de Charles Taylor
Charles Taylor, em A Era Secular, analisa como as sociedades modernas deveriam preservar a convivência de múltiplas formas de vida, inclusive religiosas, sem que nenhuma domine o espaço comum. Quando um templo se torna palanque, não apenas a fé é politizada — mas também se impõe a uma pluralidade de crentes, dentro da própria igreja, a visão política de seus líderes.
A matéria de O Globo destaca o risco de "instrumentalização do templo", com igrejas transformadas em plataformas de candidatos, o que ameaça a diversidade interna das próprias comunidades religiosas. Nem todo fiel compartilha da mesma opção política de seu pastor ou sacerdote. Usar o púlpito para pedir votos trai a pluralidade e violenta a consciência individual.
O paradoxo Bíblico: fé como justiça, não como poder
Do ponto de vista bíblico, como vimos, a instrumentalização política da fé é frontalmente criticada. Quando Jesus se recusou a ser rei (João 6:15) ou quando expulsou os vendilhões do Templo (Mateus 21:12-13), ele deixou claro que a casa de oração não pode se tornar "covil de ladrões". O poder religioso, quando se funde ao poder político, historicamente produziu corrupção, violência e exclusão.
O projeto de novo Código Eleitoral — que, segundo a reportagem, ainda poderá ser aprovado a toque de caixa — não fortalece a liberdade de culto, como alega, mas antes corrói tanto a liberdade religiosa genuína quanto a igualdade política.
Ao abrir brechas para campanhas eleitorais em igrejas, o Estado brasileiro — sob a falsa bandeira da liberdade — ameaça a própria liberdade que jurava proteger. Como alertavam Arendt, Habermas e Taylor, sem um espaço público preservado da captura do sagrado e do emocional, a democracia deixa de ser um regime de razão e pluralismo para se tornar um teatro de manipulações.
Em nome da fé, estão atacando a própria fé.
Em nome da liberdade, estão minando a liberdade.
Em nome do povo, estão empobrecendo a cidadania.
Que a sociedade brasileira esteja atenta. O púlpito não deve ser palanque. E a fé, não deve ser moeda de troca eleitoral.
Fonte: Citada no texto