Cartaz Netflix Cem Anos de Solidão
Houve um tempo em que Macondo era puro desejo. Um desejo de fundação, de deriva, de experimentação. José Arcadio Buendía seguiu uma linha que cortava a selva como uma flecha incerta — não sabia o que buscava, mas sabia que fugir era necessário. Assim nascem os territórios nômades: não como destinos, mas como vetores de fuga.
Durante um tempo, Macondo viveu sua condição rizomática. Era uma aldeia sem mortos, sem igreja, sem fronteira. Nomeavam as coisas com etiquetas e inventavam a ciência entre o tédio e o assombro. Era o que Deleuze e Guattari chamariam de formação maquínica primitiva, ainda não capturada por um aparelho de Estado, ainda sem os códigos do capital.
Mas o tempo da inocência é breve — e a sobrecodificação é implacável.
Veio o padre com sua cruz, o coronel com suas guerras, a empresa bananeira com seus contratos. Um a um, os fluxos foram domesticados: o trabalho virou salário, a terra virou escritura, o amor virou maldição. Macondo, como as periferias e as florestas do nosso Brasil, foi sendo dobrada, estriada, capturada.
A sobrecodificação do Estado, no léxico deleuzeano, não é só a imposição da lei. É a tentativa de transformar o múltiplo em uno, o fluxo em forma, o desejo em norma. Assim opera o Estado e sua geometria: centralizando, estratificando, regulando.
Na Amazônia, isso se traduz nos mapas que não cabem na mata, nos discursos que não entendem a cosmovisão indígena, nas fronteiras que ignoram as rotas do garimpo ilegal, do tráfico, da fé e da pólvora. Nas periferias urbanas, se manifesta nas leis que não cruzam a viela, nas instituições que já foram cooptadas por milícias, nos agentes do Estado que atuam como máquinas de guerra.
É aí que Cem Anos de Solidão deixa de ser um romance mágico para se tornar uma cartografia do real, uma pedagogia da complexidade. Macondo não é um lugar — é um diagrama de captura e fuga, de desejos que se repetem até se anularem, de genealogias que giram sobre si mesmas como galáxias condenadas.
Ler Márquez com Deleuze é reconhecer que nossos territórios — da selva aos becos, dos sertões aos guetos — não são simplesmente "ausência de Estado", como dizem certos analistas apressados. São antes zonas de sobreposição e tensão entre múltiplos agenciamentos: o capital transnacional, o Estado fraturado, os poderes armados paralelos, os saberes ancestrais, os fluxos informais de vida.
E, nesse sentido, há algo de Buendía em cada liderança comunitária que insiste em nomear o mundo à sua maneira; há algo de Macondo em cada ocupação que resiste à normatividade; e há algo de trágico em cada tentativa de ler o Brasil como um só país, quando somos muitas Macondos em permanente coexistência extrínseca.
Recomendação de leitura crítica:
Ler Cem Anos de Solidão à luz de Mil Platôs não é um exercício de erudição gratuita, mas uma necessidade política e epistemológica. Entender a sobrecodificação do Estado e os fluxos descodificados é essencial para qualquer política pública que se pretenda eficaz em áreas de fronteira — sejam geográficas, simbólicas ou institucionais.
No fundo, como sugerem Deleuze e Guattari, o desafio não é conquistar a ordem, mas habitar o caosmos com lucidez e sensibilidade. E García Márquez, com sua Macondo, nos ensinou que há uma ética no desejo que escapa — mesmo quando tudo parece estar condenado a repetir-se.
Fonte: Citada no texto