Arquivo Pinterest
Na encruzilhada entre filosofia e literatura, há um tema que insiste, retorna, desafia e interroga: a repetição. Repetimos gestos, palavras, ideias, rotinas. Mas o que significa repetir? É simplesmente fazer de novo? Ou há na repetição algo que pode abrir uma fissura na ordem das coisas — um ato de liberdade, resistência ou até mesmo criação?
Três pensadores nos oferecem mapas distintos, talvez complementares, para essa travessia: Gilles Deleuze, Albert Camus e Michel Foucault.
Para Deleuze, repetir não é reproduzir o mesmo, mas afirmar o diferente. Em Diferença e Repetição, ele afirma que a verdadeira repetição não se submete à regularidade da natureza, nem à reprodução mecânica de um gesto. Repetir, sob a forma da lei moral, é legislar para si mesmo, como queria Kant, mas indo além: é criar um sentido ético a partir do próprio gesto — uma fidelidade à diferença.
Aqui, a repetição santifica o ato, porque o sujeito, ao reiterar uma decisão ética, torna-se legislador de si mesmo. Não mais marionete da natureza ou do hábito, mas agente de um valor singular.
Em Camus, especialmente em A Peste e O Mito de Sísifo, a repetição se torna um campo de afirmação moral sem transcendência. O Dr. Rieux, enfrentando a peste, repete gestos de cuidado, mesmo sabendo que a doença retornará. Sísifo, condenado a empurrar eternamente uma pedra montanha acima, aceita seu destino e o transforma em liberdade.
A repetição, nesse cenário, não é punição — é resistência. É no ato reiterado, lúcido e sem esperança, que nasce a ética camusiana: agir mesmo sem garantias, repetir mesmo sem redenção. Como escreve Camus, "é preciso imaginar Sísifo feliz".
Mas então vem Foucault, com seu bisturi genealógico, e corta essa esperança. Em História da Loucura e Microfísica do Poder, ele revela como a repetição, longe de ser libertadora, é muitas vezes uma técnica de sujeição.
Repetimos não por liberdade, mas porque fomos treinados a isso: nas escolas, nas prisões, nos hospitais, nos asilos. A repetição molda corpos, fabrica sujeitos, constrói o que é normal e exclui o que é louco. A reiteração aqui não santifica — ela disciplina. Ela fabrica a ordem.
A "casa dos loucos", símbolo da modernidade racional, nasce da repetição de práticas de exclusão — gestos que se tornam rotinas, rotinas que se tornam instituições, instituições que produzem verdades.
Na prática cotidiana — na escola, na cidade, nas redes sociais —, qual repetição estamos encenando?
A do Dr. Rieux, que age por compaixão, mesmo sem sentido?
A de Sísifo, que transforma o castigo em liberdade?
Ou a dos corpos dóceis de Foucault, treinados a obedecer pela repetição invisível dos comandos?
Talvez estejamos em todas essas ao mesmo tempo. Talvez cada repetição precise ser interrogada: ela liberta ou sujeita? ela cria ou repete o que nos destrói?
O desafio está lançado: repetir, sim — mas não como cópia, não como obediência. Repetir como forma de pensar o novo, de agir com consciência, de interromper o fluxo do automático. Como dizia Deleuze, a repetição verdadeira é a que rompe com a norma, e como nos lembrava Camus, é preciso repetir mesmo quando nada garante que valerá a pena.
Porque repetir, no fundo, é também perguntar: em que tipo de mundo queremos insistir?
Fonte: Citada no texto