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Há algo no ar além dos dados. A percepção que os jovens têm hoje do mundo é radicalmente distinta da de seus pais. E não se trata apenas de mudança de costumes ou de tecnologia digital. O que está em curso é uma transformação profunda — uma virada na própria forma de viver, de trabalhar, de se relacionar com a realidade.
Inspirado nas seções "Não Coisa 1" e "Não Coisa 2" do livro O Mundo Codificado, do pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser, este texto propõe um olhar mais atento sobre o que está por trás do discurso sobre o fim do trabalho e da automação. Flusser nos ajuda a perceber que não é apenas o emprego que muda, mas o próprio conceito de trabalho e de vínculo humano.
Na era das "coisas", que marcou a modernidade industrial, trabalhar era transformar o mundo com as mãos: fazer, produzir, carregar, instalar, consertar. Havia um vínculo direto entre a ação e o objeto criado. O emprego era um lugar de pertencimento social — mesmo que duro, era compreendido e localizado. A identidade vinha do ofício.
Hoje, na era das "não coisas" — feita de códigos, imagens digitais, algoritmos e nuvens — o trabalho se tornou imaterial, simbólico, deslocalizado e fragmentado. O fazer se transforma em operar interfaces. O resultado do esforço é muitas vezes invisível, impermanente e automatizado. E o pior: não raro o trabalho se disfarça de vida e a vida se apresenta como tarefa.
Nesse novo mundo, os jovens crescem operando realidades codificadas. Habituam-se a produzir conteúdo, captar atenção, interagir com sistemas opacos e algoritmos que decidem o que devem ver, consumir, desejar. Já não há fronteira clara entre o tempo de viver e o tempo de trabalhar. O vínculo se desfaz. O emprego vira login.
Muito se fala que "os robôs estão tirando empregos", mas isso é apenas a ponta visível do iceberg. O que está em jogo é a dissolução da própria ideia de trabalho como base para a construção de identidade, cidadania e pertencimento. E isso afeta não só a economia, mas também o modo como nos percebemos no mundo — nosso valor, nossos afetos, nosso tempo.
Vilém Flusser não lamenta essa mudança. Ele nos convida a pensá-la criticamente, para que não sejamos apenas objetos do processo. Ele propõe uma nova alfabetização — simbólica, crítica, estética — para que possamos compreender os códigos que nos rodeiam, e quem sabe, reconstruir os vínculos humanos em meio à fragmentação digital.
O desafio, portanto, é duplo: entender o mundo das "não coisas" sem cair no desespero da perda ou na euforia do progresso cego, e ao mesmo tempo, reinventar práticas coletivas, éticas e solidárias nesse novo campo de forças. É preciso repensar o trabalho, não como emprego, mas como forma de agir no mundo com sentido, junto com outros.
E isso, sim, ainda é coisa nossa.
Leituras complementares para quem deseja aprofundar:
- Vilém Flusser, O Mundo Codificado (Editora Ubu) – base da reflexão apresentada nesta coluna.
- Byung-Chul Han, No Enxame: Perspectivas do Digital – sobre o cansaço na era da hiperconectividade.
- Bernard Stiegler, O que faz a vida valer a pena ser vivida – sobre a automatização da vida e a perda do saber fazer.
- Manuel Castells, A Sociedade em Rede – análise sobre a era da informação e seus impactos no trabalho e na política.
- David Graeber, Trabalho de Merda: Uma Teoria – crítica à manutenção artificial de empregos inúteis na sociedade contemporânea.
- Zygmunt Bauman, Vida Líquida – sobre a fragilidade dos vínculos e das instituições modernas.
Fonte: Citada no texto