Foto Antiga Agência BB
A cidade é um palimpsesto. Como sugerem Guattari e Deleuze em Mil Platôs, cada camada de seu território carrega uma inscrição social, econômica e cultural, superposta às anteriores, em escalas que ora se conectam, ora se fragmentam. Mas o que acontece quando essas camadas não se fixam? Quando o tempo se impõe como um fluxo que apaga vestígios em vez de sedimentá-los? Macaé é uma cidade cuja memória parece sempre se reconfigurar, mas sem deixar registros que sustentem uma identidade duradoura.
Desde as primeiras décadas do século XX, Macaé já foi "Princesinha do Atlântico", expressão que remetia ao seu charme litorâneo e às suas águas abundantes. Em seguida, tornou-se "Capital Nacional do Petróleo", título que, apesar de impactante, a colocou como satélite de uma cadeia produtiva global, mais do que como protagonista autônoma. Agora, tenta se afirmar como "Capital da Energia", mas a fluidez desse conceito reforça a efemeridade da identidade urbana. Nenhum desses títulos, ao que parece, se consolidou de maneira definitiva no imaginário social.
Vilém Flusser, em O Mundo Codificado, apresenta a ideia do Homo Faber, aquele que fabrica e deixa marcas, e do Homo Ludens, que vivencia e experimenta, sem necessariamente construir algo perene. A identidade de Macaé parece oscilar entre esses dois arquétipos. Foi Homo Faber na época das grandes instalações portuárias, dos oleodutos, dos prédios administrativos e das plataformas offshore. Mas falhou em criar uma memória social estruturada. No tempo atual, de fluxos digitais e redes desterritorializadas, a cidade tenta ser Homo Ludens, apelando para a experiência do setor de serviços, turismo e inovação energética, mas sem que essas vivências sejam suficientemente fortes para enraizar um senso identitário coletivo.
Se a cidade não estruturou um espaço de memória sólida, isso se deve, em parte, à natureza de suas transformações históricas. No ciclo do café, era um entreposto de escoamento agrícola. Com o declínio dessa economia, ficou em uma espécie de suspensão até a explosão do petróleo na Bacia de Campos, nos anos 1970. Essa transição abrupta não permitiu um desenvolvimento linear da identidade urbana. Como Guattari e Deleuze sugerem, as relações sociais inscritas no território se estratificam, mas em Macaé muitas dessas inscrições foram substituídas antes mesmo de serem absorvidas.
O resultado é uma cidade onde a história recente não se enraizou o suficiente para ser identitária. O que define Macaé hoje? É um nó em uma rede de fluxos globais, um ponto de conexão entre mercados de energia, trabalho e tecnologia. Mas o pertencimento local, essencial para consolidar um espaço de memória, ainda é difuso. As novas gerações transitam por um território onde os vestígios históricos não contam uma narrativa única, mas sim múltiplas versões fragmentadas.
Se a identidade de Macaé não pode ser extraída apenas dos ciclos econômicos que a transformaram, onde então encontrá-la? Talvez na própria lógica rizomática das redes urbanas contemporâneas. Em vez de tentar fixar um título definitivo – como "Capital do Petróleo" ou "Capital da Energia" –, a cidade poderia reconhecer sua identidade na fluidez, na adaptação, na inovação constante. O desafio seria, então, criar mecanismos para que essa mobilidade não apague as memórias, mas as transforme em um patrimônio vivo, capaz de se renovar sem se dissipar.
Em um mundo cada vez mais desterritorializado, como diria Flusser, talvez a verdadeira identidade de Macaé esteja justamente na capacidade de se reinventar sem se perder. Mas para isso, precisará aprender a contar sua própria história – não apenas como uma sucessão de ciclos econômicos, mas como uma experiência urbana e social que transcenda o tempo.
Fonte: Mil Platôs, Gilles Deleuze e Felix Guattari, 2012