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O tempo, dissolvido em imagens desconexas, escorria como areia fina entre os dedos. Ele despertava dentro do próprio sonho, fragmentado entre lembranças e ilusões, sem conseguir distinguir onde terminava a realidade e começava o delírio. A sensação era de um cinema interno, uma projeção contínua de cenas em que os cortes não obedeciam à lógica, mas ao impulso puro do desejo e da memória.
Estava ali, sentado num café, cercado por estantes cheias de livros antigos. A capa vermelha de um volume lhe chamava a atenção – algo nele ressoava como um eco perdido. Quando abriu o livro, não havia mais livraria, mas um salão de baile. Lustres imponentes derramavam sua luz dourada sobre um ambiente suntuoso, onde casais rodopiavam ao som de Yantra, de Vanessa Mae.
E lá estava ela, vestida num longo vestido preto, decotado nas costas até o limite do proibido. Eles se encontraram no meio da pista, suas mãos se tocaram, e um turbilhão de sensações e memórias explodiu entre os dois. A dança os levou a um mergulho profundo em olhares e gestos, como se cada movimento fosse um capítulo perdido de uma história inacabada.
A música cessou, e sem transição alguma, estavam sobre uma boia motorizada em um canal veneziano. A água refletia a lua cheia, alaranjada como um sol espectral. A guia turística, de olhos misteriosos, estava próxima demais, seu hálito quente e úmido contra seu rosto. Sem compreender a sucessão dos acontecimentos, ele a beijou, e tudo se condensou naquele instante fugidio – até que sentiu suas mãos explorando os limites do desejo, num toque que fazia fronteira com o abismo.
De súbito, estavam na Praça de San Marco. Máscaras vitorianas escondiam rostos indecifráveis, e uma passarela elevava os foliões acima das águas que tomavam lentamente a cidade. A multidão lhe fazia reverências, como se o tempo tivesse se curvado à sua presença. A lua seguia sua trajetória no espelho líquido da praça, e ele se perguntava se ali, naquele espaço de devaneio, o tempo era um conceito descartável.
Caminhou por vielas estreitas, onde sombras se fundiam em corpos em êxtase. O desejo ali era uma entidade solta, uma força maior que o pudor ou a razão. Quando finalmente encontrou um banheiro, percebeu que não havia portas – não havia onde se esconder. O olhar alheio pesava sobre sua nudez como um julgamento silencioso.
Ao sair dali, viu-se em uma praia. O vento trazia o cheiro salgado do mar e a promessa de um novo capítulo da fantasia. Caminhou entre corpos nus, sem se espantar com a naturalidade da cena. E então, sob um guarda-sol desbotado, uma mulher repousava, apenas com a parte inferior do biquíni, os seios descobertos, o rosto escondido sob um livro aberto.
O título do livro o fez estremecer: A Possibilidade de uma Ilha, de Michel Houellebecq. O marcador de página era seu – aquilo era impossível. Quando a mulher abaixou o livro e revelou o rosto, o tempo se dissolveu. Era ela. O passado encarnado no presente. A memória materializada, desafiando a barreira dos anos.
"Você por aqui?" – sua voz soou como um convite e uma armadilha.
Ele se sentou ao seu lado, incapaz de responder com palavras que fizessem sentido. O desejo estava ali, vivo, mas o tempo o aprisionava numa jaula de incerteza. Olhava para os seios dela, mas algo em sua mente bloqueava o impulso do prazer. A consciência de que tudo era efêmero, de que qualquer tentativa de resgatar o passado era vã, pesava mais do que o desejo.
Ela se levantou, disse que voltaria logo. Ele a viu se afastar e tentou segui-la, mas cada passo que dava, ela parecia se dissolver na multidão. Tentou correr, mas o espaço se dobrava sobre si mesmo. Um ruído o fez estremecer.
O despertador tocava.
O sonho se desfez num instante. O prazer, a paixão, o reencontro – tudo evaporou como fumaça. Sentado na cama, olhando para o teto, ele compreendeu a verdade brutal: os momentos que mais desejamos são sempre os que nos escapam. Como um sonho interrompido, como um amor que nunca se fecha.
E tudo que restava era o vazio da consciência desperta.
Fonte: A Possibilidade de uma Ilha, Michel Houllebecq, Record Ed.; Clement Rosset, A Lógica do Pior