Jornal O Globo, domingo 2/02/25
No silêncio de um domingo, encontrei Dorrit Harazim. Não em carne e osso, mas na matéria densa de suas palavras, que escorriam pelas páginas como um vinho bem decantado. O prazer do escritor e o do leitor não são os mesmos — são independentes e, ao mesmo tempo, tramam entre si um jogo de sedução. Eu lia, mas também era lido.
A princípio, deixei-me levar pelo fluxo, degustando as notas de seu texto como um sommelier que entrega os sentidos ao vinho raro. No entanto, à medida que avançava, percebi que não era apenas um apreciador: sua escrita exigia minha participação. Como quem prova um sabor desconhecido e busca nomeá-lo, descobri-me no processo de decifração. O que ela diz? O que ela me diz? O que ela me faz dizer?
Dorrit não escreve para conforto. Sua prosa é uma cartografia que se desenha entre margens, entre o visível e o insinuado. Há um jogo em sua textualidade que não se sustenta em uma narrativa linear, mas sim estrutural, quase um labirinto onde o sujeito e o objeto se confundem. Frente a seu texto, não há passividade. Não se trata de uma escrita que explica, mas que tensiona, desafia, faz vibrar.
Se houvesse uma estética do prazer textual, certamente ela incluiria a voz — não a voz da fala comum, mas aquela que se impõe como presença, como matéria. Roland Barthes chamou-a de grão da voz, esse resíduo que escapa ao sentido, que não pertence ao fenotexto, à superfície das palavras, mas ao genotexto, àquilo que ressoa antes mesmo de ser compreendido.
Ler Dorrit foi como ouvir uma voz alta em um salão vazio, um som que não pede permissão para existir. Um texto que não se dissolve no entendimento imediato, mas persiste na memória como um eco. Foi um encontro, não com uma escritora apenas, mas com uma forma de escrita que me obrigou a me reescrever.
E, no fim, era esse o jogo.
Fonte: O prazer do texto, Roland Barthes