BANNER

A Cidade dos Justos

Uma Narrativa Sobre Pureza, Perigo e o Terror da Existência

Por Jorge Aziz em 31/01/2025 às 16:30:56

Arquivo Pinterest.com

Era uma vez uma cidade erguida sobre o medo. Não o medo rasteiro e imediato das feras ou da fome, mas o medo estrutural, aquele que paira sobre todas as coisas, tecendo o próprio tecido da existência. O medo da morte, da dor, do erro e da culpa. Seus primeiros habitantes, desprovidos de certezas, sentiam-se à mercê dos ventos, das águas, das sombras. Foi então que surgiu a necessidade de uma ordem, uma crença que desse sentido ao caos.


Primeiro vieram os sacerdotes, homens e mulheres que aprenderam a nomear os terrores e a propor expiações. Criaram ritos, sacrifícios, jejuns e oferendas. Diziam que os Deuses exigiam pureza, que a sujeira corrompia não apenas os corpos, mas também as almas. Assim nasceu a doutrina da purificação: águas batismais, cinzas redentoras, jejuns para fortalecer o espírito contra as fraquezas da carne.


Depois vieram os juristas, com suas tábuas de leis e seus códigos de conduta. Ensinaram que não bastava temer os Deuses, era preciso temer os homens. Criaram o Direito, os julgamentos e os castigos, pois acreditavam que a justiça era o escudo contra o caos. Como escreveu Hobbes, sem um Leviatã, a vida seria "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". E então o Estado tornou-se Deus na terra, o único capaz de garantir a ordem e punir os transgressores.


Vieram também os filósofos e cientistas, portadores da nova crença: a razão. Explicaram o mundo através da lógica, desmontaram mitos, substituíram os Deuses por fórmulas e os pecados por doenças da mente e do corpo. Mas, no fundo, continuavam a combater o mesmo inimigo: o medo. Criaram remédios para as dores, anestesias para a angústia, e terapias para a culpa. No entanto, como alertou Clément Rosset, "a realidade é insuportável", e todo conhecimento é, no fundo, um modo de lidar com a vertigem de existir.


Assim, a cidade cresceu, multiplicando suas formas de administrar o terror. O medo do pecado era curado pela confissão; o medo da injustiça, pelos tribunais; o medo da ignorância, pelos livros; o medo da dor, pelos médicos; o medo do desamparo, pelos líderes; o medo da desordem, pela guerra. E todas essas estruturas, essas crenças, tornaram-se rituais. "Tudo é rito", diriam os antigos. "A única diferença entre um rito sagrado e um rito secular é quem se ajoelha diante de quem."


Mas havia algo que ninguém conseguia remover completamente: a sensação de que, por trás de todos esses artifícios, a sombra do vazio ainda pairava. Como advertia Nietzsche, "Deus está morto" e, com Ele, morreram também as certezas. Se antes a cidade era protegida por divindades, agora era protegida por contratos sociais, pela crença de que a razão poderia subjugar o caos. Mas e se essa crença também fosse um mito?


Em meio a isso, nasceu um dissidente. Um homem que olhou para o coração da cidade e viu que, apesar de todo o aparato de crenças, o medo ainda estava lá, pulsando como um coração oculto sob os templos e os tribunais. Ele perguntou: "E se não houver redenção? E se o erro não puder ser apagado, a dor não puder ser evitada e a culpa não puder ser absolvida?"


Foi então que a cidade começou a ruir. Os sacerdotes não sabiam como responder, pois toda a fé dependia da promessa do perdão. Os juristas hesitaram, pois toda a lei dependia da ideia de uma justiça última e absoluta. Os cientistas silenciaram, pois toda a razão dependia da esperança de que compreender era o mesmo que controlar.


E a cidade caiu. Mas não em ruínas de pedra e cinza. Caiu no que sempre foi: uma construção frágil contra o terror do nada. Pois, como dizia Camus, "não há destino que não se supere pelo desprezo". E ali, entre as ruínas, nasceu um novo tipo de homem – um homem que não fugia do terror, mas o habitava.


Talvez esse homem tenha sido um louco. Ou talvez tenha sido o primeiro verdadeiramente livre.

Corretora
Zion