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O meu café de domingo

O que os olhos vê o coração não sente?!

Por Jorge Aziz em 26/01/2025 às 10:49:20

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Acordei com um domingo de sol de verão o. O dia se anunciava em claridade, mas não garantia nada além disso. Ainda sonolento, abri as janelas da casa e deixei o ar quente se misturar com os restos da noite que ainda resistiam no quarto. Preparei o café, o gesto mecânico de medir o pó, aquecer a água, escutar o borbulhar. A fumaça ascendente me lembrou do prazer banal e necessário dos pequenos rituais: acender um cigarro, molhar a planta, sentir o cheiro da manhã como quem toca o próprio tempo.

No jardim, o jornal me esperava dobrado na grama. Peguei-o com cuidado, sentindo a aspereza do papel impresso. O primeiro gole de café queimou a língua, um aviso de que a realidade não se entrega sem luta.

Abri o jornal e percorri as manchetes. O mundo, mais uma vez, anunciava sua tragédia habitual. Um líder mundial prometia mudar tudo. Um mercado financeiro em turbulência. Uma nova guerra possí­vel. A incerteza servida como novidade, como se não o fosse a substância mesma do tempo. Barthes teria sorrido diante desse jogo de significantes, onde a verdade não é um dado, mas uma construção, um prazer do texto jornalístico que se esconde na ilusão de objetividade. O leitor cúmplice dessa farsa, finge que não sabe. E lê.

Trump, Lula, Xi Jinping, nomes que dançam no tabuleiro da ordem mundial. Mas a ordem é um mito, uma ficção bem encenada, um palco montado para que o público se tranquilize ou se desespere, dependendo do gosto do freguês. O futuro é incertos, grita a manchete, mas desde quando o futuro foi outra coisa? Rosset me sussurra ao ouvido: a crueldade do real está justamente em sua indiferença. O jornal não relata, ele produz uma representação, um espelho distorcido no qual cada um vê o que quer.

Viro a página e lá está ela: a matéria sobre um reality show. "O Brasil está pronto para mostrar sua cara".A ficção atinge seu ápice. Como na Grecia Antiga, há um oráculo que oferece respostas e vislumbres do destino. A TV, esse templo moderno, proclama que qualquer um pode alcançar a glória, desde que suporte as provas, as humilhantes, a exposição, o jogo sujo. Como se a vida fosse isso. Como se não fosse.


Camus, em algum canto da minha estante, me lembra que há um absurdo em tudo isso. O absurdo de viver sabendo que a existência não oferece garantias, e ainda assim continuar. Assim como Sísifo, que rola sua pedra montanha acima, para la descer e recomeçar o esforço, assistimos, consumimos, opinamos, discutimos, sabendo que nada muda. O prazer do jogo está no jogo, não no resultado.

A diferença entre o mito de Sísifo e o reality show é que, no segundo, há um prêmio de um milhão de reais. Mas a pergunta essencial permanece: isso nos torna menos absurdos?

Dou um último gole no café já morno. O jornal continua ali, sobre a mesa, os signos do mundo expostos em preto e branco. Respiro fundo. O sol de verÃo avança, indiferente as manchetes e aos mitos. A realidade, essa amante cruel, segue intacta. Fecho o jornal. A vida continua.


Corretora
Zion