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A Cidadania Confiscada
"O valor do indivíduo depende, na maioria das vezes, do lugar onde está. O acesso aos bens e serviços essenciais à vida, tanto públicos quanto privados, é diferencial e contrastante, o que exclui uma grande parcela da população desse acesso."
(Milton Santos, 1987)
A cidadania, compreendida como a plena titularidade de direitos e deveres, não se distribui de maneira homogênea no espaço social e territorial. O acesso à informação, elemento essencial na sociedade contemporânea, é desigual, e, como destaca Milton Santos, a desinformação equivale à desarmonia diante das rápidas transformações da vida cotidiana. O conceito de poder de (potestas), formulado por Thomas Hobbes, implica a capacidade de agir para alcançar um futuro desejado, mas, na prática, esse poder depende da inserção nas estruturas institucionais e sociais. Assim, a cidadania não pode ser dissociada do território, pois o valor do indivíduo varia conforme sua localização dentro da sociedade.
Desigualdade Territorial e a Cidadania Limitada
A Constituição brasileira estabelece a igualdade formal de direitos, mas, na realidade, os bens públicos permanecem acessíveis apenas para aqueles que ocupam os espaços privilegiados do território nacional. O Brasil apresenta vastas áreas carentes de hospitais, escolas, creches e demais serviços básicos. Esse vácuo institucional não é apenas uma deficiência administrativa, mas um sintoma da exclusão estrutural, que transforma milhões de indivíduos em meros habitantes, e não cidadãos plenos.
Num contexto em que a cidadania é confiscada, surge a figura do consumidor mais-que-perfeito: aquele que, ao invés de reivindicar direitos, apenas consome bens materiais e imateriais (turismo, lazer, educação, etc.). Esse fenômeno reforça a lógica de um mercado onde a cidadania é reduzida ao ato de consumo, alienando a dimensão política e social do indivíduo.
Poder Invisível e a Manipulação Eleitoral
Nas sociedades tradicionais, o poder era visível e personificado em líderes que simbolizavam a autoridade. Hoje, o poder se torna invisível, diluído em redes de influência e sustentado por campanhas publicitárias e manipulação midiática. O eleitor, como observa Milton Santos, não é necessariamente um cidadão. Seu papel se encerra no momento do voto, funcionando como um consumidor passivo de um "produto político" embalado pelo marketing eleitoral.
No Brasil, essa distorção se agrava pela fragilidade dos partidos políticos, que, em muitos casos, não representam verdadeiramente os eleitores e operam como meras máquinas eleitorais. A estrutura eleitoral perpetua desigualdades regionais: enquanto cada Estado elege três senadores, independentemente de sua população, o voto de um senador do Acre (com menos de 500 mil habitantes) vale 100 vezes mais que o de um senador paulista (com 50 milhões de habitantes). Na Câmara Federal, o sistema de representação proporcional (RP) é distorcido por coligações partidárias oportunistas e pela frágil fidelidade partidária, fazendo com que os eleitos muitas vezes não representem verdadeiramente os eleitores que os colocaram no poder.
A organização política brasileira reforça o clientelismo e o populismo, dois elementos que enfraquecem a cidadania. O clientelismo, ao condicionar o voto a favores individuais ou setoriais, desvia o foco da construção de um projeto coletivo de sociedade. O populismo, por sua vez, mobiliza massas por meio de promessas segmentadas, muitas vezes sem compromisso real com transformações estruturais. Ambas as práticas contribuem para a manutenção de um eleitorado fragmentado e vulnerável, perpetuando a não-cidadania.
A Cidadania e as Ordens de Justificação
Luc Boltanski e Laurent Thévenot, em A Justificação, propõem um modelo de análise das sociedades baseado em ordens de justificação, ou cités. Cada cité representa um regime de valores que justifica ações e relações sociais. No Brasil, o regime de cidadania plena deveria estar ancorado na Cité Cívica, onde os indivíduos se reconhecem como iguais em direitos e deveres, tendo participação ativa na sociedade. No entanto, predomina uma combinação entre a Cité do Mercado (onde as relações sociais são mercantilizadas) e a Cité Industrial (onde o valor do indivíduo é definido por sua posição na estrutura produtiva).
Essa fusão de ordens enfraquece a cidadania ao reduzir o espaço público a uma lógica de trocas econômicas e a um sistema político voltado para a eficiência administrativa, em detrimento da participação democrática genuína. Em outras palavras, os cidadãos são tratados ora como consumidores, ora como meros engrenagens do aparato produtivo, sem que tenham real influência sobre as decisões que moldam a sociedade.
Conclusão: Para Além da Cidadania Confiscada
O Brasil, para ser verdadeiramente democrático, precisa avançar na construção de um espaço público onde a cidadania seja efetiva, e não apenas formal. Isso implica reformas estruturais que garantam acesso equitativo a bens e serviços essenciais, uma representação política mais justa e a superação das lógicas clientelistas e populistas. Enquanto a cidadania for condicionada pela geografia e pela lógica do mercado, a democracia permanecerá um projeto inacabado, e a sociedade seguirá estruturada pela desigualdade e pela exclusão.
Somente quando todos os indivíduos forem reconhecidos como cidadãos, e não apenas consumidores ou eleitores passageiros, será possível construir uma sociedade onde a participação política e a justiça social sejam efetivas. O desafio, portanto, é romper com o modelo da cidadania confiscada e promover uma ordem de justificação que resgate a dimensão coletiva e solidária da vida pública.
Fonte: Citada no corpo da matéria