O Jantar
A mesa estava posta com esmero. A porcelana herdada da avó brilhava sob a luz amarelada do lustre. O aroma do ensopado de carne pairava no ar, misturando-se ao leve perfume de lavanda que a mãe sempre espalhava pela casa. Era uma noite especial, um raro momento em que a família conseguia se reunir para um jantar tranquilo, longe das correrias do dia a dia.
Marta, a filha mais velha, universitária de Humanas e profundamente religiosa, observava a todos com um olhar sereno. João, o irmão mais novo, estudante de Física e assumidamente cético, remexia a comida no prato enquanto parecia absorto em pensamentos. O pai, sempre atento, ajeitava o guardanapo no colo, e a mãe, com um sorriso maternal, servia o pão caseiro que havia preparado.
— Hoje, na aula de Filosofia Social, discutimos uma frase de Auguste Comte — disse Marta, rompendo o silêncio. — "Se o amor não pode dominar, como reinaria o espírito? Toda supremacia prática faz parte da atividade". Achei tão bonito faz todo sentido! O mundo precisa de mais amor para que as coisas caminhem melhor.
João sorriu de canto, prevendo a discussão que viria. Levantou o olhar e rebateu:
— Eu discordo completamente. Essa ideia de que o amor deve reinar como princípio organizador da sociedade me parece um equívoco. O amor não pode ser um meio de dominação ou um critério de organização social. Se algo governa, é a razão, não o amor.
A mãe suspirou discretamente, enquanto o pai ergueu uma sobrancelha, atento. Marta, no entanto, não se intimidou:
— Mas, João, o que seria da razão sem amor? Até a ciência, com toda sua exatidão, precisa de paixão para existir. O que impulsiona um cientista a buscar respostas? Não é, no fundo, o amor pelo conhecimento?
João cruzou os braços, pensativo.
— Não nego que há paixão na busca do conhecimento, mas daí a dizer que o amor deve "dominar" ou "reinar" é outra coisa. Amor é algo pessoal, íntimo. Torná-lo um princípio organizador é uma ilusão. E tem mais: Comte, o pai do positivismo, não era um grande defensor da religião, você sabia?
Marta respirou fundo.
— Sei muito bem, João. Mas veja, a essência do que ele diz pode ser interpretada de outra forma. O amor, no sentido cristão, não é apenas um sentimento, é uma prática, uma virtude. E se queremos um mundo melhor, precisamos que ele seja a base de tudo.
O pai, que até então observava o embate com uma expressão serena, resolveu intervir:
— Vocês dois têm razão, cada um à sua maneira. O amor não pode ser uma ferramenta de dominação, mas também não pode ser descartado. No fundo, a vida é uma dança entre razão e sentimento.
A mãe sorriu, satisfeita com a sabedoria do marido.
João soltou um riso baixo.
— Então estamos em um dilema um equilíbrio entre amor e razão.
Marta assentiu.
— Como sempre esteve, João. Você e eu, por exemplo. Somos diferentes, mas nos amamos, não é?
João suspirou e sorriu.
— Sim, Marta. Apesar de tudo, sempre nos amamos.
O silêncio que se seguiu não foi de desconforto, mas de compreensão. A mãe serviu mais sopa, o pai comentou sobre um novo projeto no trabalho, e a conversa logo se desviou para lembranças da infância.
Naquela noite, como em tantas outras, eles concordaram em discordar. O amor não precisava reinar, nem ser vencido. Ele simplesmente estava ali, entrelaçado nos laços invisíveis que os uniam, mais forte do que qualquer argumento.