O peso da cidade

A cidade desfigurada

Por Jorge Aziz em 17/01/2025 às 14:01:40

Ruas desertas

Marlene e Dulce encontraram-se por acaso na padaria da rua principal, uma das poucas ainda frequentadas por antigos moradores. O encontro foi uma surpresa e um alívio.

— Até que enfim vejo uma cara conhecida! — exclamou Marlene, ajeitando os óculos para enxergar melhor a amiga.

Dulce sorriu, mas logo sua expressão se tornou sombria.

— De fato, a cidade mudou muito. Não reconheço mais ninguém. Só vejo estranhos, e isso me assusta…

Elas pediram café, mas o sabor parecia diferente. Ou talvez fosse a cidade que, pouco a pouco, perdera seu gosto.

— Outro dia fui ao centro depois do expediente e aquilo lá virou um deserto. Só moradores de rua. Parece uma cidade fantasma. — Dulce mexia distraidamente no açucareiro.

— Todos os conhecidos foram embora, se trancaram nos condomínios. Os que ficaram, já não saem de casa. Antigamente, a gente caminhava sem medo. Agora… — Marlene deixou a frase no ar, como se até as palavras tivessem medo de se manifestar.

O progresso prometia segurança, mas trouxe insegurança. Os investimentos cresceram, as fábricas chegaram, e com elas vieram os forasteiros. Trabalhadores sem instrução, sonhadores sem amparo. E junto deles, os invisíveis: os que não encontraram um lugar na engrenagem, os que perambulavam pelos sinais de trânsito oferecendo balas ou estendendo as mãos vazias.

— Não consigo mais abrir o vidro do carro. Sempre tem alguém pedindo, vendendo, insistindo… Eu tenho medo.

Marlene assentiu, compreendendo. O medo era a única coisa que compartilhavam agora.

O café esfriava na xícara enquanto elas reviviam tempos passados, lembranças de quando as ruas eram lugares de encontros, e não de ameaças. Mas o passado era uma cidade distante, inalcançável, cujas ruas foram demolidas pela modernidade líquida.

A vida se dissolvera, os laços se afrouxaram, e tudo escorria por entre os dedos como água morna.

— Outro dia, minha neta me disse que faz mercado só pelo celular. Nem ao supermercado ela vai mais. Você acredita?

Dulce riu, mas era um riso seco.

— Eu acredito, sim. Daqui a pouco, a gente só vai ver os vizinhos pelo monitor das câmeras de segurança.

E então, por um instante, as duas se calaram.

Lá fora, a cidade pulsava, viva, indiferente às suas angústias. Novos rostos passavam, carregando esperanças ou fardos invisíveis. Talvez, para eles, aquela cidade fosse um lugar de possibilidades.

Mas para Marlene e Dulce, ela já não existia mais.


Fonte: Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman

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