O vento que sopra do mar

Educação de Jovens e Adultos

Por Jorge Aziz em 15/01/2025 às 20:54:13


Nasceu na Zona Norte de uma cidade do Norte Fluminense, outrora modesta, mas que foi invadida pelo brilho do petróleo. A promessa de riqueza, trazida pelas plataformas que se erguiam na paisagem e pelas chamas ardentes na queima de gás das flares, parecia imprimir um novo ritmo à vida. Porém, o crescimento acelerado também despertou fantasmas: periferias se multiplicaram em ocupações irregulares, enquanto alguns poucos desfrutavam de piscinas azuis e condomínios fechados.

No bairro dos Cambucás, lá nas margens do grande rio que corta a cidade onde o vento soprava o cheiro do mar misturado ao ruído urbano, ficava a pequena Escola Municipal Farol do Saber – EJA.

A pintura desbotada denunciava o descaso, mas o prédio abrigava algo pulsante: a juventude sedenta de perspectivas. Jovens que trabalhavam durante o dia nas ruas, como vendedores ambulantes, motoboys ou em bicos por toda a cidade petrolífera, e que, quando chegava a noite, buscavam na escola alguma esperança de mudança.

Professora Aurora, uma mulher de fala mansa e olhar firme, chegara àquele lugar vinda do interior. Carregava uma mala de histórias e um desejo inabalável de transformar vidas. A seu lado estava Seu Martim, professor de Matemática que, entre os intervalos, gostava de contar causos do tempo em que o bairro era apenas um matagal, antes de as plataformas extrativas começarem a rugir.

Em uma noite de chuva fina, quando pouquíssimos alunos tiveram coragem de encarar as poças e a lama das ruas dos Cambucás, Aurora e Martim ficaram a sós na sala vazia. Sentados diante das carteiras abandonadas, delinearam um plano ousado: envolver toda a comunidade para criar um projeto solidário que oferecesse, além de aulas formais, oportunidades de empreendedorismo e estímulo cultural.

A ideia parecia um sonho distante num lugar onde tudo faltava: saneamento básico, luz elétrica regular, oportunidades de emprego estável. Contudo, o acaso interveio. A associação de moradores, encabeçada por Dona Estelita, ouviu falar da iniciativa e convidou os professores a expor a proposta numa reunião comunitária. Lá, entre gente simples e esperançosa, arquitetaram uma rede de trocas solidárias: costureiras locais ofereceriam oficinas de reparo de roupas, jovens fãs de hip-hop ministrariam aulas de rima e dança, e médicos voluntários do posto de saúde fariam palestras sobre prevenção de doenças.

Em poucos meses, os muros da escola começaram a ganhar murais coloridos, pintados pelos próprios alunos, retratando a história do bairro dos Cambucás e a vida no batente. A cada aula, brotavam relatos de quem já fora esquecido pelo poder público, mas agora redescobria o próprio valor. No meio da quadra esburacada, formou-se uma feirinha de trocas que unia agricultura familiar, pequenos serviços e apresentações artísticas.

As notícias se espalharam. Fios de solidariedade cruzaram a cidade, do centro à Zona Norte, conectando o Farol do Saber a outras iniciativas. O brilho do petróleo, paradoxalmente, serviu como lembrete de que a verdadeira riqueza também mora nas relações humanas. E, assim, naquela escola de paredes gastas, cresceu um vigor diferente, incapaz de ser medido pelas estatísticas oficiais: o poder de transformar vidas, nutrido pela força coletiva.

No final de cada noite, depois que as luzes se apagavam, Professora Aurora e Seu Martim sentiam o vento marinho correr pelos corredores, como se agradecesse àquele grupo de educadores por ousarem mudar o destino de tantos jovens. Nas salas simples da EJA, a educação deixava de ser um mero conteúdo didático e passava a ser a semente de uma revolução silenciosa, pronta para florir em cada mente que descobria o próprio valor.

Pensando uma proposta:

Para construir um programa de Educação Básica de Jovens e Adultos (EJA) em escolas públicas de áreas periféricas, onde a maior parte dos estudantes provém de comunidades de baixa renda, é fundamental adotar uma abordagem que considere a realidade concreta desses sujeitos. A perspectiva empírica, que observa sujeitos, relações, instituições, comportamentos, ritos, habitus, discursos e imagens, pode orientar a elaboração de uma proposta pedagógica contextualizada, inclusiva e transformadora. Seguem algumas diretrizes e pontos de partida:

1. Diagnóstico e Escuta Atenta da Comunidade

• Mapeamento das demandas reais: Antes de qualquer planejamento curricular, é essencial conhecer a fundo o público-alvo — suas histórias de vida, necessidades, expectativas, experiências de trabalho, dinâmicas familiares e comunitárias.

• Escuta ativa e participativa: Promover rodas de conversa, reuniões com lideranças locais, visitas às comunidades e diálogo com organizações do bairro. A participação de alunos, familiares e representantes comunitários é essencial para compreender os desafios e potencialidades de cada contexto.

2. Currículo Contextualizado e Significativo

• Conteúdos que dialoguem com a realidade: Incorporar temas como direitos trabalhistas, saúde pública, economia doméstica, mobilidade urbana e cidadania, conectando o conhecimento formal às questões práticas da vida cotidiana.

• Valorização das culturas locais: Reconhecer e incorporar saberes, tradições, costumes e linguagens das comunidades. Esse processo estimula a identidade e o sentido de pertencimento, fundamentais para a permanência dos estudantes.

3. Metodologias Ativas e Participativas

• Inspiração Freireana: Seguindo o legado de Paulo Freire, propor uma educação dialógica, onde os estudantes são agentes ativos do processo de aprendizagem. O professor atua como mediador, estimulando a troca de saberes e reflexões sobre a realidade.

• Aproximação da teoria e prática: Incentivar projetos de pesquisa-ação, onde os estudantes investigam problemas reais de sua comunidade (coleta de lixo, saneamento, violência, etc.) e buscam soluções coletivas.

• Aprendizagem cooperativa: Dinâmicas em grupo e rodas de conversa valorizam as experiências de cada participante, reforçando vínculos sociais e o desenvolvimento de competências comunicativas.

4. Flexibilidade e Acolhimento

• Horários adequados: Muitos jovens e adultos trabalham, cuidam de familiares ou enfrentam longos deslocamentos. Propor períodos de aula flexíveis e oferecer suporte para conciliá-los com outras demandas.

• Estratégias de permanência: Criar espaços de acolhimento que ofereçam suporte psicossocial, creche ou atividades para crianças (caso os estudantes sejam pais ou mães), refeições e transporte, quando possível.

• Ambiente inclusivo: Combater preconceitos de gênero, etnia, classe e idade, garantindo que todos se sintam seguros, respeitados e acolhidos.

5. Formação Contínua de Educadores

• Sensibilização para a diversidade: Promover cursos, oficinas e reflexões permanentes que capacitem os professores para lidar com os desafios das periferias e atender às necessidades específicas dos alunos (baixos níveis de letramento, defasagens, traumas, etc.).

• Integração de saberes: Estimular práticas interdisciplinares, em que diferentes áreas do conhecimento (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas e Naturais) trabalhem juntas para explorar problemas concretos e promover aprendizagens significativas.

6. Parcerias e Redes de Apoio

• Articulação com serviços sociais: Trabalhar em conjunto com postos de saúde, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), conselhos tutelares e ONGs para garantir suporte integral aos estudantes (saúde mental, inclusão social, documentação, etc.).

• Envolvimento de lideranças comunitárias: As lideranças religiosas, esportivas, culturais e associativas podem se tornar parceiras na mobilização e fortalecimento do vínculo escola-comunidade.

• Fomento à participação cidadã: Criar conselhos escolares e fóruns comunitários que discutam políticas públicas e ações de melhoria do bairro, facilitando a participação dos estudantes como sujeitos políticos.

7. Avaliação Formativa e Inclusiva

• Práticas avaliativas contínuas: Priorizar avaliações que considerem a evolução individual do aluno ao longo do tempo, valorizando conquistas e identificando dificuldades para reorientar a prática pedagógica.

• Autoavaliação e coavaliação: Estimular momentos em que os próprios estudantes reflitam sobre seus avanços e necessidades, ampliando o senso de autonomia e responsabilidade.

8. Uso de Linguagens Diversificadas

• Recursos multimídia: Utilizar vídeos, podcasts, fotografias, aplicativos e ferramentas digitais para dialogar com o cotidiano e reforçar habilidades de leitura, escrita e interpretação.

• Artes e expressões culturais: Atividades de música, teatro, dança e artes visuais são fundamentais para trabalhar criatividade, autoestima e senso crítico, além de fortalecer vínculos afetivos com a escola.

9. Sistematização de Experiências e Aprendizados

• Documentação das práticas: Registrar projetos, oficinas, materiais didáticos produzidos e estratégias que deram bons resultados, para multiplicar as experiências bem-sucedidas.

• Replicação e adaptação: Compartilhar o conhecimento produzido com outras escolas e comunidades, incentivando trocas e aprimoramentos constantes.

Por Onde Começar?

1. Levantamento de dados e diálogo inicial: Visitar a comunidade, mapear demandas, ouvir os estudantes e suas famílias.

2. Formação e sensibilização da equipe: Reunir coordenadores, professores e gestores para alinhar objetivos, discutir metodologias e rever práticas tradicionais que não dialogam com a realidade local.

3. Planejamento do currículo flexível: Definir conteúdos e abordagens a partir dos problemas e interesses levantados, sempre com espaço para ajustes.

4. Criação de um grupo de apoio comunitário: Organizar uma comissão ou conselho aberto a representantes de famílias, entidades locais, professores e estudantes para acompanhar o desenvolvimento do programa.

5. Execução piloto e avaliação contínua: Iniciar as atividades em uma turma ou em um projeto-piloto, avaliando periodicamente resultados, desafios e potencialidades para, então, expandir a proposta a outras turmas e escolas.

Em síntese, a construção de um programa de educação para Jovens e Adultos em áreas periféricas deve nascer de um olhar empírico e participativo que leve em conta a diversidade de sujeitos, suas trajetórias e os contextos socioculturais em que estão inseridos. O objetivo central é promover a emancipação e a autonomia dos educandos, fortalecendo seus vínculos com a escola e com a comunidade, e preparando-os para atuar de forma crítica e transformadora na sociedade.


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