O resto é silêncio

O último ato

Por Jorge Aziz em 14/01/2025 às 15:49:29

Júlio Ramalho, aos 73 anos, nunca aprendeu a descansar. Jornalista aposentado, viveu a maior parte da vida entre deadlines apertados e a adrenalina de furar pautas. Depois de décadas na ativa, em vez de se render à paz da aposentadoria, mergulhou ainda mais fundo em um novo jornalismo, só que agora como consumidor: comprava livros e jornais como quem compra oxigênio. Sentava-se à mesa da cozinha ao amanhecer com três jornais e dois cafés fortes, ruminando editoriais como um bovino moderno, engolindo manchetes de tragédias climáticas, escândalos políticos e desastres humanitários com a mesma avidez que outros homens de sua idade reservavam para novelas ou partidas de dominó.

Nas redes sociais, sua verve continuava afiada. Debatia com estranhos como se estivesse em um salão iluminista. Os algoritmos o adoravam, alimentando-o com novos antagonistas a cada rolar de tela. Era uma batalha interminável. "Essa é minha missão", dizia para si mesmo, enquanto digitava furiosamente respostas em caps lock para algum desconhecido com avatar de anime e ideias tortas sobre economia global.

Mas então, certo dia, a roda do destino girou em falso. Júlio abriu Além do Bem e do Mal, de Nietzsche, buscando alguma faísca para incendiar seu espírito crítico. Chegou ao trecho sobre o martírio do filósofo. "Até mesmo a defesa de si! Corrompe a inocência e a sutil neutralidade da sua consciência". Ele parou. Sentiu algo como um golpe seco no estômago. O que estou fazendo? — a pergunta ecoou, desconfortável. Era como se Nietzsche o tivesse visto através do tempo, encenando, discutindo, debatendo, mas para quê? O teatro era tão importante quanto ele fazia parecer?

Naquela noite, ele não conseguiu dormir. Rolava na cama, as palavras do filósofo reverberando como uma sentença. E, então, veio o colapso. No dia seguinte, ao ligar a TV para o noticiário, algo que nunca havia acontecido aconteceu: ele desligou o aparelho. Tentou pegar um jornal, mas suas mãos tremeram ao perceber que nenhuma manchete fazia sentido. Por um instante, ele se viu, de fora, como um personagem de uma tragédia: o ator que acredita no próprio roteiro.

Por semanas, Júlio vagou pela casa como um fantasma. Estava desarmado. O impulso de comprar livros e jornais persistia, mas ele os empilhava, intocados. Até que, um dia, no meio de uma caminhada pela orla da praia, um pequeno evento — aparentemente insignificante — o despertou. Uma criança deixou cair um balde de plástico, e a maré o levou para longe. A criança chorava, inconsolável. Júlio hesitou. Sua mente, antes tão ativa, produziu um pensamento simples: "Isso importa?". Ele decidiu que sim. Entrou na água fria e recuperou o balde. A criança parou de chorar, olhou para ele com um misto de surpresa e gratidão, e correu de volta para os pais.

Naquela noite, ele percebeu que o gesto, embora insignificante no grande esquema do mundo, não precisava ser mais do que isso. Era suficiente.

Júlio então começou a reorganizar sua vida, pouco a pouco, com a consciência de que nem tudo que parecia urgente realmente importava. Vendou-se aos gritos do mundo, que, antes, o dominavam. Tornou-se seletivo. Escolheu ouvir mais, falar menos. Passou a evitar debates frenéticos, dedicando-se, em vez disso, a ensinar um neto a plantar tomates no quintal. O trabalho parecia inútil no início — era mais fácil comprar tomates no mercado —, mas ele se viu sorrindo ao ver o garoto sujar as mãos de terra.

No final, não foi uma epifania que o salvou, mas uma sequência de atos diminutos. Ele aceitou a mortalidade de suas ideias, reconhecendo que elas, como ele, eram efêmeras. Sentou-se à sombra de um ipê no parque e escreveu a última frase de seu diário:

"O mundo não precisa de mártires. Talvez precise apenas de quem saiba ouvir o silêncio."

E pela primeira vez em décadas, o silêncio o acolheu.


Fonte: Além do bem e do mal, Friedrich Nietzsche

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