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Aventuras de um viajante

Entre o desejo e a vontade

Por Jorge Aziz em 12/01/2025 às 21:40:36


Assim que adentrou o ônibus-leito, ele se perdeu na rotina mecânica dos primeiros momentos da viagem. Despachou a mala, apresentou o bilhete e subiu os degraus com o cuidado de quem encara um ritual. Procurou o assento 17 e, ao encontrá-lo, fez o que muitos passageiros fazem: testou o mecanismo retrátil do banco, acendeu a lâmpada de leitura, ajustou o fluxo de ventilação e olhou ao redor para localizar o toalete. "Pronto, agora posso relaxar," pensou.

O movimento dos demais passageiros o distraiu. Alguns repetiam gestos semelhantes aos seus. Outros ocupavam-se em encontrar seus lugares. Foi então que ela apareceu. Uma mulher elegante, com uma bolsa vermelha e um casaco sobre o braço, que parou em frente ao assento 18. Ele a observou com um interesse que parecia despretensioso, mas carregava em si as sementes do desejo. "Será que terei companhia?" cogitou.

Ela guardou a bagagem de mão no compartimento superior, revelando a silhueta esguia e precisa de seus movimentos. Um perfume floral, doce e inebriante, pareceu inundar o pequeno universo do ônibus, deixando um rastro que misturava frutas silvestres e bálsamo. O aroma não apenas perfumava o ar; impregnava sua percepção, como se aquele instante fosse gravado em suas memórias sensoriais.

— Boa noite — cumprimentou a passageira, com um sorriso breve e educado.

Ele respondeu com igual cortesia, mas sua mente já estava povoada por algo mais que palavras.

O ônibus soltou o freio de ar, e o barulho característico deu início à jornada. A luz principal apagou-se, deixando apenas um trilho luminoso no chão para guiar os passos noturnos. Ele se ajeitou no banco, pensando no longo percurso de sete horas e nas paradas programadas. "Chegarei cedo demais," refletiu. "O dia estará apenas começando."

Mas o que realmente tomava sua mente não era o itinerário. Era ela. Recostada no banco ao lado, com os olhos fechados e o casaco cobrindo parte do corpo, parecia repousar numa aura de tranquilidade. Ele notava cada detalhe: os sapatos escarpim que deixavam os tornozelos à mostra, as pernas bem torneadas, a saia que moldava suas formas, as mãos delicadas com unhas pintadas em vermelho rubi, os anéis e o relógio que completavam sua aparência elegante. Mesmo na penumbra, o contorno do rosto alongado, os cabelos caindo sobre os ombros e o tronco esboçado pela malha fina o capturavam.

"O desejo," ele pensava, "é um tirano. Mas e a vontade? Não seria ela o verdadeiro cárcere?"

Inspirado por essas reflexões, seus pensamentos se voltaram para a filosofia. Schopenhauer já havia apontado o desejo como um impulso inevitável, uma força cega que nos empurra sem nos perguntar. Mas Nietzsche, por outro lado, celebrava o desejo como parte da "vontade de potência," uma afirmação do ser, um grito de existência.

Ele olhava para ela, tentando entender onde terminava o desejo e começava a vontade. O que queria? Simplesmente contemplar? Ou ceder ao impulso que clamava pelo toque? E, mesmo que quisesse, teria coragem de transformar pensamento em ação? "Todo ato de vontade," refletiu, "não é mais do que um campo de batalhas entre pensar, sentir e comandar."

A cada movimento dela, ele parecia entrar mais fundo nessa batalha interna. Quando ela suspirava ou mudava ligeiramente de posição, ele sentia o corpo se mover quase instintivamente, como se o desejo o conduzisse. Tentou, em um gesto quase imperceptível, tocar seu braço no encosto compartilhado. Sentiu o calor da proximidade, mas ela permaneceu imóvel, indiferente ao contato que ele ousava buscar.

Depois de um tempo, ela reclinou o banco ao máximo, cobriu o tronco com o casaco e esticou as pernas. A saia subiu levemente, expondo mais da pele, como se cada gesto fosse um convite involuntário ao jogo de sedução. Ele observava, agora dominado por um misto de fascínio e inquietação. O desejo parecia comandá-lo, mas algo mais profundo o prendia à inércia. "Sou prisioneiro dos mitos," pensou, "destes falsos filósofos que nos fazem acreditar em um livre-arbítrio inexistente. E se o querer não fosse uma escolha, mas uma corrente?"

As horas se passaram, e ele permaneceu assim, entre a contemplação e o conflito. No final da viagem, quando o ônibus finalmente parou e os primeiros raios de sol iluminavam o horizonte, ela acordou, ajeitou o casaco e a bolsa vermelha, deu-lhe um último sorriso e saiu. Ele a seguiu com os olhos até desaparecer pela porta.

Aquele perfume, aquele instante, o desejo não consumado — tudo isso ficou com ele. Não como uma oportunidade perdida, mas como uma prova viva do jogo entre desejo e vontade. Ele nunca mais a viu, mas por toda sua vida, ao sentir um aroma parecido ou ao encontrar-se diante de novas decisões, lembrava-se dela e daquele momento no ônibus. Não era apenas uma lembrança. Era uma lição.

Afinal, a aventura de um viajante não está no destino, mas nos caminhos que percorre dentro de si.


Fonte: Ítalo Calvino, Os amores impossíveis; Friedrich Nietzsche, Além de bem e do mal.

Corretora
Zion