Conto de ficção
Dentro de um pequeno apartamento, onde a luz azul do monitor misturava-se com a luz quente de uma luminária no canto, Letícia e seu irmão mais novo, Gabriel, dividiam o espaço silencioso da sala. Letícia, uma jovem de vinte e poucos anos, estava debruçada sobre seu notebook, enquanto Gabriel rolava o feed do celular com uma expressão vaga, como se fosse absorvido pelo próprio brilho da tela. A conversa que se seguiria traria à tona mais do que a distância de suas idades: seria o reflexo de uma sociedade que havia tornado o "duplo" um espelho digital.
— Olha isso, Lê — disse Gabriel, interrompendo o som constante do teclado da irmã. Ele segurava o celular para mostrar uma postagem de um influenciador. — O cara tá dizendo que largou tudo, redes, grana, pra "se encontrar". Mas, veja só, tá ganhando dinheiro com isso agora. Mais um curso pago pra "libertar sua mente".
Letícia olhou de relance para a tela e voltou aos seus afazeres.
— Gabriel, você não acha irônico que a gente precise postar sobre como nos desconectamos? É como tentar apagar o reflexo de um espelho ao pendurá-lo em outro.
— Isso não faz sentido — respondeu Gabriel, franzindo a testa. — Você tá dizendo que ele tá errado em querer se livrar dessas coisas?
— Não, mas o problema não é ele. É o duplo. — Letícia fez uma pausa, apoiando os cotovelos na mesa. — Lembra daquele quadro que eu te mostrei? "O Ateliê" de Vermeer? Aquilo ali é genial. O pintor vira as costas pra própria obra, quase que dizendo: "eu não preciso estar aqui, não importa o que eu pareça". Mas o que a gente faz hoje? A gente só pinta para os outros. Nosso duplo não é mais uma sombra silenciosa, é o feed que criamos. E sem isso, a gente morre por dentro.
Gabriel ficou em silêncio, absorvendo as palavras enquanto o celular tremia em sua mão com novas notificações.
No quarto ao lado, a mãe deles, Carolina, segurava o próprio celular, enquanto assistia a um vídeo sobre os perigos das redes sociais para jovens. Com um suspiro pesado, levantou-se e foi até a sala.
— Vocês estão de novo grudados nessas coisas? — reclamou Carolina, cruzando os braços. — É por isso que tá todo mundo ficando vazio. Eu li uma coisa hoje sobre como o excesso de redes sociais faz mal pra alma.
— E quem postou isso? — Letícia respondeu, levantando o olhar com um sorriso sarcástico.
— Isso não importa, Letícia. O que importa é que vocês estão exagerando — disse a mãe, ajeitando o cabelo enquanto digitava algo no celular. — Vocês não têm ideia do que isso pode fazer com a mente.
Gabriel riu e levantou o celular para apontar para ela.
— Mãe, você tá mandando mensagem enquanto diz isso. Tá postando no grupo da família agora?
Carolina hesitou, mas não respondeu. No fundo, ela sabia que não tinha força para escapar da teia que a prendia. Havia um conforto contraditório em compartilhar, mesmo que fosse um conselho, uma crítica ou uma simples foto do café da manhã.
— É diferente. Eu faço isso porque preciso, não porque quero. Vocês são jovens, deviam viver a vida, não se esconder atrás dessas telas — insistiu Carolina, mas sem muita convicção.
Letícia levantou-se e pegou a câmera de Gabriel que estava no canto. Apontou para o irmão e, em seguida, para a mãe.
— Vocês não entendem. A gente não "se esconde" atrás das telas, mãe. A gente se projeta nelas. E o problema é que quanto mais a gente projeta, menos sobra de nós aqui. — Ela bateu de leve no próprio peito. — Estamos virando só reflexos uns dos outros, mas ninguém tem coragem de quebrar o espelho.
Carolina encarou a filha, como se tivesse sido atingida por algo que não sabia nomear. Gabriel, por sua vez, parecia perdido em pensamentos. Por um momento, a sala ficou em silêncio, o único som vindo do ventilador no canto.
A mãe voltou para o quarto, mas deixou a porta entreaberta. Lá dentro, sentou-se na cama, olhou para o celular e, pela primeira vez, desligou-o.
Letícia voltou ao notebook, enquanto Gabriel, hesitante, guardava o celular na mochila.
Naquele apartamento, a batalha pelo "eu" continuava. Entre postagens, reflexos e fugas, a família tentava entender se era possível, afinal, amar a si mesmo às cegas, como nos ensinava a sombra de Narciso — mas desta vez, com o olhar para além da tela.