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O crepúsculo do ano

Uma crônica de duplos

Por Jorge Aziz em 29/12/2024 às 10:34:30

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No último dia do ano, a praça central parecia uma procissão de fisionomias sobrepostas. Sob o céu plúmbeo, o relógio da torre fazia sua contagem final, cada badalada ecoando como um lembrete da caducidade do tempo e de sua insidiosa circularidade. Os vendedores ambulantes gritavam ofertas em vozes roucas, enquanto os transeuntes, ansiosos e resignados, caminhavam como que empurrados por uma força invisível. Era um espetáculo de duplicidades: rostos iluminados por fogos de artifício e obscurecidos por presságios inconfessos.

Entre os grupos que discutiam sobre o que o próximo ano traria, dois extremos emergiam: os crentes e os céticos.

— O Salvador virá, disse uma mulher, segurando um cartaz pintado à mão. Seus olhos brilhavam com a intensidade de quem acredita que cada badalada do relógio é um preâmbulo para a redenção. — Ele nos livrará daquilo que nos aprisiona: o ciclo eterno da mesma dor.

Um homem próximo a ela riu com escárnio. Era alto, de olhos fundos, carregando um cartaz que dizia: "Nada é tão ruim que não possa piorar."

— É sempre isso. Esperam o novo, mas o novo é apenas o velho disfarçado. — Ele apontou para o relógio da torre, cujo ponteiro avançava com precisão monótona. — O que vem já foi. O que é novo é apenas o real disfarçado de promessa.

Ali, a praça inteira parecia se alinhar ao pensamento de Clément Rosset: o real, sempre o mesmo, travestido de um duplo ilusório. No reflexo das luzes de Natal e no fervor das preces, o velho e o novo se entrelaçavam, indistinguíveis, em uma dança absurda.

Uma criança puxou a manga do cético:

— O senhor não acredita que o ano novo pode ser diferente?

Ele se inclinou, olhando a menina nos olhos, e respondeu:

— Só há um único ano, minha jovem. Ele apenas troca de máscara.

O relógio anunciou meia-noite. Fogos estouraram no céu, e o mundo inteiro prendeu a respiração, como se a virada trouxesse algo além de si mesma. O som abafado dos estouros misturou-se com o choro de alguns e o riso nervoso de outros.

No meio do tumulto, o cético e a crente trocaram um olhar. O primeiro, carregado de desdém, o segundo, de esperança.

— Você verá, — disse a crente, antes de desaparecer na multidão.

E então, o silêncio: o instante exato entre o fim do velho e o início do novo. Nesse vazio, tudo parecia possível.

Mas, como Rosset nos lembra, o real não tem gêmeos; só há o que é. E, no entanto, os humanos insistem em buscar o duplo.

No dia seguinte, as ruas amanheceram iguais. Restos de confetes cobriam os paralelepípedos, enquanto o vento carregava os pedaços de cartazes abandonados.

E, como sempre, a vida seguiu.


Fonte: ROSSET, Clement. O real é seu duplo: ensaio sobre a ilusão

Corretora
Zion