Uma reflexão sobre tragédia climática, responsabilidade social e a cegueira da modernidade
Desde os anos 1990, os modelos climáticos já previam os impactos catastróficos que hoje se concretizam diante de nossos olhos. Como destacou o professor Jem Bendell em Deep Adaptation: A Map for Navigating Climate Tragedy (2018), os organismos internacionais e os estados-nação tinham pleno conhecimento do que estava por vir. No entanto, não se sensibilizaram com a tragédia anunciada, preferindo manter uma economia e uma política baseadas no consumo e na exploração irrestrita dos recursos naturais.
Diante desse cenário, a pergunta que emerge é: será que agora, com os eventos climáticos cada vez mais extremos, esses mesmos agentes estão se sentindo pressionados a agir? Ou estamos diante de uma "cegueira branca civilizatória", como José Saramago sugere em Ensaio sobre a Cegueira? No romance, a incapacidade coletiva de enxergar o óbvio reflete uma metáfora poderosa da alienação social e moral que também parece se aplicar à crise climática.
Essa cegueira não é apenas moral, mas também estrutural, como argumentaria Clément Rosset em sua tese A Anti-Natureza. Ele aponta que a modernidade transformou a natureza em uma externalidade, uma entidade separada e passível de exploração. Essa desconexão epistêmica, aprofundada por séculos de visão tecnocrática e econômica, reforça a incapacidade de reconhecer que as consequências climáticas são, em última instância, um reflexo de nossas escolhas.
Bruno Latour complementa essa crítica ao sugerir, em Enfrentando Gaia, que não é possível solucionar a crise climática com os mesmos paradigmas que a criaram. Ele chama a atenção para a necessidade de uma nova epistemologia que integre humanidade e planeta, rompendo com a narrativa de progresso linear que ignorou as interdependências ecológicas.
No entanto, mesmo com essa consciência, o dilema moral persiste. Hans Jonas, em O Princípio Responsabilidade, destaca que as sociedades modernas têm o dever de agir com precaução, considerando não apenas o presente, mas as gerações futuras. Ele alerta que a inação não é apenas negligência, mas um fracasso ético.
O recente G20 no Rio de Janeiro, em 2024, trouxe novamente à tona a urgência da transição para economias sustentáveis, mas os compromissos assumidos seguem tímidos diante da escala do problema. Como nos relatórios da COP29, as promessas feitas ainda esbarram na força de interesses econômicos e na resistência cultural ao reconhecimento da gravidade da crise.
É notório os impasses e as respostas tímidas na luta contra a crise climática evidenciados no G20 de 2024 no Rio de Janeiro e na COP29, realizada em Baku. No G20, líderes das maiores economias globais não apresentaram compromissos concretos, limitando-se a declarações de apoio às negociações climáticas da COP29. Apesar de pressões por metas financeiras mais ambiciosas, como o aporte anual de US$ 1,3 trilhão para mitigação climática e adaptação, não houve consenso, principalmente devido a resistências de países desenvolvidos. O retorno de Donald Trump à presidência dos EUA em 2025 também gera incertezas quanto à continuidade de ações climáticas robustas.
Durante a COP29, a falta de acordo sobre financiamento climático e um mecanismo de governança eficaz para acelerar os compromissos do Acordo de Paris reforçaram os desafios. A proposta do Brasil de alcançar um pacto ambicioso antes da próxima COP30 que será aqui no próximo ano em Belém, alerta para a urgência de ações estruturais contra o colapso.
Esta narrativa pode aprofundar o debate sobre até que ponto as instituições globais estão preparadas para enfrentar os desafios climáticos e se a transição para uma governança climática mais robusta e equitativa ainda é possível.
Será que ainda há tempo para agir? A questão não é apenas cronológica, mas existencial. Se há uma cegueira que nos impede de reconhecer a gravidade do momento, precisamos perguntar: o que mais precisa acontecer para que enxerguemos? Talvez a resposta esteja menos em esperar pela sensibilização de lideranças globais e mais em repensar, como sociedade, nossa responsabilidade coletiva, admitindo que os paradigmas que nos trouxeram aqui não nos levarão além.
Referências Bibliográficas
1. Jem Bendell - Deep Adaptation: A Map for Navigating Climate Tragedy, 2018.
2. José Saramago - Ensaio sobre a Cegueira, 1995.
3. Clément Rosset - A Anti-Natureza, tradução de L"anti-nature, 1973.
4. Bruno Latour - Enfrentando Gaia: Oito Conferências sobre o Clima e a Nova História da Terra, 2017.
5. Hans Jonas - O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica, 1979.
6. Relatórios das Conferências das Partes (COPs), especialmente COP28 e COP29.
7. Declarações e resultados do G20 Rio de Janeiro, 2024.
Fonte: Citada na matéria