Onde nós erramos com a Natureza?

Sonambulismo da Modernidade

Por Jorge Aziz em 27/11/2024 às 11:19:02

Impacto da crise climática

A crise climática que enfrentamos hoje pode ser lida como uma consequência profunda de um "erro conceitual e epistêmico" no modo como concebemos e nos relacionamos com a natureza.

Tanto Clement Rosset, em A Anti-Natureza, quanto Bruno Latour, em Jamais Fomos Modernos, e Hans Jonas oferecem perspectivas provocativas que questionam as bases filosóficas, culturais e epistemológicas que sustentam essa relação. Ao confrontarem o status de "natureza" como uma construção histórica e ideológica, os autores nos ajudam a repensar o ponto de ruptura entre humanidade e o ambiente.

A natureza como simulacro in - A Anti-Natureza-Clement Rosset desmonta a ideia de que a "natureza" é uma entidade intrinsecamente ordenada, racional ou moralmente superior. Para Rosset, a natureza não possui uma essência fixa, mas é antes um conceito arbitrário, frequentemente usado como projeção de desejos humanos ou como suporte para ideologias culturais e políticas.

O autor explora a ideia de "anti-natureza" para revelar a arbitrariedade por trás da tentativa de impor uma ordem transcendental à realidade. Assim, a natureza, enquanto categoria, transcende os estágios históricos e civilizatórios, mas sempre carrega consigo a marca do antropocentrismo e do desejo de controle.

Rosset argumenta que a ilusão de uma "natureza universal" nos distancia da aceitação do caos e da contingência como partes fundamentais da existência. A negação desse caráter desordenado pode ser vista como uma raiz filosófica da crise climática: ao moldar a natureza como algo que deve ser "gerido" ou "domesticado", criamos um abismo epistemológico que impede a coexistência equilibrada entre humanos e o mundo não humano.

Já o Bruno Latour: A modernidade como falácia da separação, in Jamais Fomos Modernos, Bruno Latour oferece um diagnóstico complementar. Latour desconstrói a narrativa da modernidade, que se baseia na separação binária entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto. Ele argumenta que essa dicotomia é uma ilusão, sustentada por sistemas de conhecimento que reivindicam uma pureza inexistente.

A modernidade, segundo Latour, criou a ideia de que a ciência é capaz de "traduzir" a natureza em termos objetivos, enquanto o social é visto como algo inteiramente distinto. No entanto, a proliferação de híbridos — entes que misturam natural e cultural, como organismos geneticamente modificados ou mudanças climáticas — evidencia que essa separação nunca foi real.

Latour nos convida a abandonar o paradigma moderno em favor de um pensamento que reconheça a interconexão e a interdependência entre humanos e não humanos. Ao fazê-lo, ele sugere que o erro epistemológico não está apenas na concepção da natureza, mas também na falácia de que poderíamos agir sobre ela sem reconhecer as consequências recíprocas.

Tanto Rosset quanto Latour, identificam um problema central na maneira como construímos e usamos a ideia de natureza. Para Rosset, o erro está na tentativa de naturalizar uma ordem fixa e estável; para Latour, está na separação artificial entre o mundo natural e o cultural. Em conjunto, suas reflexões apontam para a necessidade de superar tanto as ilusões de transcendência quanto as dicotomias modernas. A crise climática emerge, assim, como um sintoma desse duplo erro epistemológico: tratamos a natureza ora como algo que podemos dominar, ora como algo separado de nós.

No entanto, um ponto de divergência interessante é o papel que cada autor atribui à possibilidade de superação dessa crise. Enquanto Latour parece otimista em relação à construção de novos paradigmas epistêmicos e políticos, Rosset é mais cético, sublinhando a dificuldade de abandonar as ilusões que sustentam nossa visão de mundo. Essa tensão entre ceticismo e otimismo é crucial para pensar os desafios práticos e teóricos da sustentabilidade no Antropoceno.

Onde erramos com a natureza?

A conexão entre Rosset e Latour revela que o erro fundamental está na relação de alienação que construímos com a natureza. Ao invés de reconhecê-la como algo complexo, contingente e indissociável de nossas próprias existências, criamos categorias que ora a romantizam, ora a instrumentalizam. O resultado é uma crise que não é apenas ecológica, mas também epistemológica: um colapso de paradigmas que exige novos modos de pensar e agir.

Repensar a natureza, com base nas lições de Rosset e Latour, implica abandonar o desejo de controle e a ilusão de separação, abrindo espaço para uma ética da interdependência e da aceitação do imprevisível. A crise climática, nesse sentido, é tanto um desafio quanto uma oportunidade para reavaliarmos onde, como e por que erramos.

Hans Jonas, em seu artigo "Mudança e Permanência: sobre a possibilidade de compreensão da história", problematiza as condições de inteligibilidade da história ao explorar a tensão entre mudança (o fluxo incessante de transformações) e permanência (as estruturas que dão continuidade ao humano).

Essa reflexão se conecta profundamente à crítica da ideia de natureza apresentada por Clement Rosset e Bruno Latour, oferecendo uma nova camada de entendimento sobre como nossa visão histórica e ontológica influencia nossa relação com o mundo natural.

Jonas propõe que a história humana deve ser compreendida como um espaço dinâmico onde mudança e permanência coexistem. Essa perspectiva reflete uma crítica implícita às tendências de absolutização, seja na tentativa de fixar o mundo natural como uma entidade estática (a "natureza eterna" criticada por Rosset), seja na negação das interconexões entre natureza e cultura (o binarismo rejeitado por Latour).

Jonas sugere que a história só pode ser inteligível se reconhecermos a dialética entre esses dois polos, admitindo que a permanência não é um estado de imobilidade, mas algo que se renova no movimento histórico.

No contexto da crise climática e da relação com a natureza, Jonas nos faz perguntar: será que nosso fracasso em lidar com os desafios ecológicos deriva de uma incapacidade de equilibrar a noção de mudança (as transformações inevitáveis que afetam o planeta) com a necessidade de permanência (preservação dos sistemas naturais e humanos em um equilíbrio sustentável)?

Ao desconstruir a ideia de uma natureza imutável, Jonas nos alerta para os perigos de um pensamento linear, que ignora o dinamismo essencial da história e da vida.

Natureza e história: uma crítica à teleologia moderna

Hans Jonas complementa a crítica de Latour à modernidade ao desafiar a ideia de que o progresso técnico-científico é o motor inevitável da história. Assim como Latour questiona a separação entre natureza e cultura, Jonas problematiza a crença de que a história segue uma trajetória linear e teleológica. Em vez disso, ele enfatiza a imprevisibilidade e a responsabilidade que decorrem de nossa posição no fluxo histórico.

Para Jonas, a "natureza" não pode ser entendida apenas como um pano de fundo passivo sobre o qual a história humana se desenrola. Ela é parte integrante da história, uma presença ativa e vulnerável. Sua ética da responsabilidade, desenvolvida em obras posteriores como O Princípio Responsabilidade (1979), ecoa a crítica de Latour ao antropocentrismo e à dicotomia natureza/cultura, convocando-nos a assumir um compromisso com o futuro da vida no planeta.

A tensão entre continuidade e ruptura na obra dos autores citados.

Se Rosset e Latour enfatizam as rupturas que moldam nossa relação com a natureza (a destruição das ilusões de ordem e das dicotomias modernas), Jonas traz uma perspectiva de continuidade. Ele nos lembra que a permanência — como herança cultural, ecológica e moral — não é inimiga da mudança, mas sua condição de possibilidade. Por outro lado, ele também adverte que mudanças radicais, como aquelas provocadas pelo progresso tecnológico desenfreado, podem ameaçar a própria permanência da vida.

Jonas vê na história não apenas uma série de eventos, mas um espaço de responsabilidade ética. Essa noção desafia tanto a visão de Rosset, que tende ao ceticismo, quanto a de Latour, que deposita esperança na construção de novos paradigmas. Jonas, mais do que qualquer um deles, insiste em que o futuro depende de um compromisso ético com a sustentabilidade, que é inseparável de uma compreensão da história como um equilíbrio delicado entre mudança e permanência.

Reflexão crítica: a crise climática como ponto de convergência

Quando aplicamos a leitura de Jonas à questão da natureza, fica claro que o erro epistemológico identificado por Rosset e Latour não é apenas um problema de abstrações conceituais. Ele é também uma falha histórica, um colapso de nossa capacidade de equilibrar as exigências de mudança com a necessidade de permanência. Jonas nos alerta que o esquecimento desse equilíbrio pode levar a consequências irreversíveis, pois a crise climática é tanto uma ruptura com o passado quanto uma ameaça à continuidade do futuro.

Se para Rosset a natureza é uma construção arbitrária e para Latour a modernidade é uma ilusão de separação, Jonas traz a visão de que nossa relação com a natureza é uma responsabilidade histórica. A ideia de natureza como algo permanente, mas também sujeito a mudanças contínuas, sugere que o problema não está apenas em como pensamos a natureza, mas em como agimos historicamente em relação a ela.

Conclusão: onde realmente erramos?

Hans Jonas nos oferece uma lente ética e histórica para complementar a crítica de Rosset e Latour. Nosso erro, segundo ele, não está apenas na forma como concebemos a natureza, mas na nossa falha em equilibrar mudança e permanência de maneira responsável. A crise climática, nesse sentido, é um ponto de convergência entre os três autores, expondo não apenas uma falha epistemológica, mas também moral e histórica. Jonas nos convoca a repensar não apenas a natureza, mas também nossa própria história, como um espaço de responsabilidade compartilhada entre o humano e o não humano.


Fonte: Bibliografias citadas no texto : Hans Jonas, Ensaios Filosóficos (tradução)Paulus, 2017; A Anti-natu

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